sexta-feira, 9 de outubro de 2009

De alma e palavras

Tomei um texto dele por emprestado.
Suas palavras criavam vida na minha boca.
Meu corpo era instrumento daquilo que ele queria dizer.
Nada muito sensual, apenas um retrato de infância que ele me emprestava.
Conhecimento de alma se resvala no outro?
Leveza de sentido se embota no ser?
Sei é que irmão de alma é criado a revelia de vida.
No momento mais besta, mais branco.
No contraponto que não se espera.
Basta uma partilha de silêncio num momento de agonia,
um refrão cantado junto, um sorriso, um segredo...
Irmão de alma é gozo que não se pede.
Irmão de alma é regalo destinado desde antes do nascido.


E agora o motivo do texto acima:


Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta. Ainda me lembro, a
mãe na porta da cozinha com o taxo na mão olhando os pastos sem fim que rondavam nossa casa. O sol batia forte no terreiro, as galinhas à sombra com as asas abertas, como se pudessem enganar o calor. Em certos dias, quando a mãe cantava essa cantiga, era sinal que o tempo iria virar. O boi existia mesmo, mas do outro lado da cerca, com a cara preta que nunca se viu igual. Eu morria de medo, porque não entendia direito aquele cara brava do boi, me acusando como se eu tivesse feito alguma coisa. Chegar perto da cerca era coisa impossível. Pior era mesmo topar com o boi no meio da estrada de terra. Isso acontecia quando menos se queria. A mãe continuava ali na beira da porta, batendo o taxo que fazia um barulho de doer o ouvido. Tim, Tim, Tim, Tim, Tim, Tim. E o tempo também virava com a cantoria, boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta. As trovejadas rasgavam o céu com um desejo sem fim. Era hora de me esconder na cama com medo da chuva e da lembrança da cara preta e brava do boi. A mãe continuava na cozinha, batendo o taxo, o boi continuava do outro lado da cerca com a cara brava e eu fazia força pra dormir antes da hora, antes da noite. Quando pegava no sono só ouvia bem longa a mãe cantando, boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta


* O Marquinhos me fez esse texto por encomenda, pra um trabalho de dia das mães numa escola.
Me lembro bem de ter dito:
- Quim, preciso de um texto daqueles, e de repente puf...
Ele me chega com um raio x da minha alma.*

2 comentários:

  1. Foi lindo, reconheci o Marquinhos nas primeiras frases. Irmãos de alma é coisa de raio x no estômago do vento que passa apertado de emoção na barriga.

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  2. muito bom ler coisas assim, lembrar como é falar do humano, de alma, essas coisas essenciais a vida... adorei conhecer esse seu espaço que não conhecia...passarei mais vezes por aqui...
    quando quiser dar uma passada pelas minhas coisas, aparece lá...
    www.sounanarodrigues.blogspot.com
    beijo!!!

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